domingo, 17 de abril de 2011

# subsolo da palavra

/Imagem de Goeldi/

Pável, covarde, te odeio. Você com essa ruga na testa e esse ar de esperança, você assim desse jeito, sinceramente, parece um boçal. Você já disse isso, não é?, já disse de si mesmo: que era um boçal, etc. – você é um babaca, Pável. Olha o seu nome, tirado de romance russo: nome de louco, de sonhador. Você com este ar de derrota na testa – onde apanhou essa ruga, meu caro?, e esses olhos então, terrivelmente apagados. Como é que pôde transformar-se nesse ser tão pesado, a pele macilenta, a boca desbeiçada, o queixo caído ao peito. Como é que pode ser isso: um sonho desgraçado, uma esperança perdida, um náufrago dos próprios projetos, eu diria um idiota, meu chapa. Não digo, não, meu Pável, porque afinal de contas hoje é seu último dia por aqui – é a última vez que nos vemos, não é mesmo? Depois deste instante, e adeus. Você já contava com isso e esse gesto de adendo não serve pra nada; confirma somente a natureza duvidosa de um homem cheio de vaidades, e também, é claro, seu velho prazer em roer o menor naco possível de insatisfação, sua culpa ou qualquer coisa assim. “A história é uma virgem donzela”, me disse, e deve mesmo se lembrar da talentosa exposição que fez, uma daquelas elucubrações tão suas. Eu lembro muito bem, meu amigo, e agora mesmo posso ver, em seus olhos escuros, o abismo de sonhos, temores crispando, o torvelinho inquieto girando na cuca; posso te ver, sonolento, calado, a noite toda aí, quase inerte, tomando cafezinhos e copos d’água. Não quis comer, recusou-me o vinho, nem mesmo falou sobre coisa nenhuma. Cada palavra que eu digo te fere, se agita e se mistura em você – as palavras te mordem, eu sei, eu vi que agora até se levantou, saiu dessa poltrona e andou por aí – deu seus passinhos, né? Até dançou que eu bem vi. Depois se encurvou novamente, meteu a cabeça entre as mãos e ficou, o rosto erguido, a porra das rugas gemendo na testa. Agora eu as vejo melhor, agora que cai essa luz sobre ti, eu bem vejo, é verdade: ela fala, meu caro, essa luz. Talvez você seja tragado por ela; e eu bem sei que acredita, piamente, Pavel, na luz oscilante que gira à sua volta. Não se envergonhe, não; olhe, se quiser ir embora de vez, eu entendo, eu aceito sua causa com todo o respeito, considero-a corajosa, cheia de virtude, a virtude luminosa dos mortos, naturezas destemidas que se atiram e seguem, à correnteza do destino, sem medo ou compaixão – eu bem sei que os heróis são assim, como estátuas de bronze, o rosto resoluto e o peito erguido:o destino à sua frente e uma história às costas....Você quer buscar uma aura pro mundo... o mundo tem andado muito triste, é verdade, muito mesquinho e acinzentado também, ele parece mesmo ter ficado imóvel depois de tanta agitação. Uma sombra a rondar a cabeça: é o demônio mofino da dúvida, atormenta teu sono e vigia tua mente; por isso passou acordado esta noite inteirinha, e é claro que sabe o problema que nos trouxe, uma destas noites, e todos já devem saber e já não resta mesmo qualquer dúvida: sempre se referem a você como um jovem derrotado, doente, um velho sem experiência, um fantasma ou algo do tipo; que amofina a si mesmo e vive esmolando perdão, a qualquer um, ao mais próximo que possa estender a mão e oferecer, por piedade, uma migalha de humanidade. Assim você ficou, e continua querendo ficar: rasteja e revolve a ruína, quer revitalizar a vida e no fundo, meu Pável, você a detesta! De-tes-ta. Fiquei sabendo que encaixotou sua literatura, que desejou virar jesus cristo gritando na rua. Pois é, engrolou seus latins, bateu no peito e arrotou em alemão e agora taí: vendendo traça pela rua, muito atento ao modo como eles se viram – os “da rua” -, tentando apreender os seus códigos. Mas não consegue enlouquecer: queria ser como os nautas e os bardos, queria viver aos soluços do vento, queria naufragar feliz pelas tardes de outono – queria cafés, cabarés, a rudeza das noites passadas em claro, a penar pelos outros, queria arrancar a estupidez do trono e restituir o lugar da verdade. Eu preciso dizer a você, meu querido, e agora eu te sublinho – queridíssimo: o herói saltou do prédio e, quando viu, estava sem asas, mas não morreu no calçamento – e sim durante o vôo, no ar... Você vê esse corpo na rua, acredito, você com certeza pode vê-lo, eu bem sei, deve passar por ali a cada um de seus dias, guardou sua imagem, o rosto sem olhos, a boca na testa, recolhe em sua mente os farrapos, cada tico de vida daquele luminoso ser, o herói sujo de óleo, as penas em sangue, um pombo no trânsito e você logo vê: a bomba instalada na cidade, as galerias lá embaixo fermentando, você sabe disso, você pensa no tráfego, em todas as vias, você vê e pensa e consegue enxergar tudo isso; tudo circula em seu corpo, os males do mundo são seus, a parafernalha infernal da cidade te habita, um pombo gorducho que pousa no asfalto parece a você importante. Acha que tudo é descritível, concreto, apreensível e, o que é pior: transformável, corrigível. Acha que tudo funciona integradamente, basta observar, e mais que isso, basta querer observar e então dar – o definitivo, o proverbial: o empurrão. Não é isso, Pável? E agora percorre o terreno da morte... É a última noite, não é isso? Nem sei bem por que, nem sei que me deu, para atendê-lo. Seu rosto surgiu-me da sombra, e então passou a falar – depois murmurou e afinal emudeceu, ficou aí pelos cantos, até deixando que era também feito de sombra, uma nódoa, ou um espectro, não sei... E se soubesse, de que adiantaria? Mas não é o caso de ter medo, meu Pável: o mundo é mesmo muito desumano.


(São Paulo, 21 de julho de 2004)

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