sexta-feira, 17 de junho de 2011

# a alma dos mortais


/Imagem de Mário de Almeida/


Lembrar e suportar, tal era o peso. O travo, eh! Guardar dentro do peito - batia o punho no roupão.

Mais novo era abatido, engrossou cedo a fila dos vencidos.

Ratuíno, azarado, pubo, puto, poltrão!

Logo afastou-se dos cenários móveis, acuou-se, prendeu-se, cuidou de detalhes, e escolheu palavras com cuidado: minudências.

Se lhe chamavam frágil suspirava: era mortal, ora essa, frágil porque feito de matéria viva.

Era duro, por dentro, dizia. Duro. Palavras fortes, pesadas, resistentes, puro aço, ácidas, secas.

Antecipara as brenhas para não perder-se, eis a verdade toda.

O oco, eu? Nem morto.

Sílaba por sílaba o silêncio.

Havia vento, havia luz, havia chuva, e tudo só recrudescia em seu severo alento: persistir, aprofundar, inamovível, na convicção.

O outro - ele, eu - que o escutasse: só diria o preciso.

Que era isso.

# bovariana III




/Imagem de Odilon Redon/


Hyppolite, pauvre de Dieu, seguindo em seu andar, claudicante.

Caminhas pra quem?  Pour notre Dieu, Monsieur, seulement pour Lui.

Cocheiro coxo, pulga do quarto estado, o corpo oferecido em Holocausto para a Magna Sciencia.

Pouvre, pó, poeira de Yonville, serves a quem, Hyppolite? À cochia, Senhor. 

O Progresso apregroa os seus signos e Hyppolite claudica, atrasado, tardio, tartamudo: le silence des imbecis.

Serves a quem? À science physique, Docteur, seulement.

Suado, com seu cheiro equíneo, Hyppolite aguarda o milagre, mãos erguidas pro céu: ao Senhor, à Ciência.

Talvez - se tivesse imaginação - pediria pro tempo parar.

(São Paulo, agosto de 2011)

domingo, 5 de junho de 2011

# bovariana II


/Imagem de Odilon Redon/


Desacreditas que ele possa ser tão forte e obstinado, tão independente. Por ele, por ele mesmo procuravas - o galã misantropo que te envolve em sua capa, plena noite, tendo em torno completo silêncio.

As folhas nem se movem, os bichos estão mudos. A natureza concentra-se toda em teu corpo, essa potência de espasmo e de luz.

É noite. Os seres concretos já dormem, apascentados. Estão saciados os apetites simples. E a sede infinita, sem nome, pode enfim consumir-se no êxtase.

Dorme, charneca; descansa, manso gado. É hora de a chama imortal inscrever o seu nome.

(São Paulo, agosto de 2011)