sábado, 24 de setembro de 2011

# ela à espera


Ela se senta ao café e o espera. Folheia revistas de variedades, fofocas, moda. Não deseja ser flagrada lendo tais tolices. Sabe bem que ele valoriza a inteligência e quando a suspende no ar num abraço apertado, quando lhe diz Meu anjo, é também a sagacidade dela, seu humor perspicaz, sua espirituosidade o que ele festeja. Quando percorre seu rosto, pescoço, barriga, ventre, pernas, tocando tudo com seus lábios calorosos, apaixonados, é também sua graça poética, sua intuição, seu surpreendente senso de beleza o que ele beija.

O arco deleitoso do riso se arma em seu rosto, um breve arrepio percorre-lhe as pernas, sobe pelas costas, agita o coração, acaba num tremor das mãos. Está completamente arrebatada.

Trata-se de um amor intermitente, que ela alimenta, a bem da verdade, desde os dezessete anos. E ele? Envolveu-se com outra, com quem manteve laços firmes, uma relação estável, que incluía família e abarcava toda sua rotina. Chegou a encontrar eles dois, certa noite, dançando numa casa de rock. Um ódio súbito fulminou-a e uma garrafa caiu de sua mão para espatifou-se no chão entre o grito Vagabunda!

Fúria, ódio, ímpeto, amor, sempre assim sua sensibilidade, sempre essas coisas ligadas em cadeia, uma necessária à outra, de modo inextricável, e por isso, ela acha ou sabe, ele acabou sumindo.

O que a faz acreditar que então agora, de uns dias pra cá, de um domingo nublado até o dia de sol colorido, café com biscoitos, calor em seu corpo – o que a faz acreditar que poderá ser diferente? A idade, talvez. Sim, porque na época era praticamente uma criança, e ele tinha já seus vinte e cinco anos.

Sim, a idade: porque, naquela época, a descoberta fascinante de seu corpo, cuja potência parecia-lhe infinita, agitava-a, punha-a ansiosa, voraz. Talvez o tenha assustado. Quem sabe, ela ri, o imaturo não seria ele. Sim, porque afinal ele voltou, preparou-lhe um banquete, comprou-lhe roupas e livros, festejava cada um de seus encontros, como quem finalmente consegue aceitar um desejo temido.

Medo: era isso o que ela provocava então?

O sorriso aberto, o rosto cheio de sol, o corpo inundado de luz, o dia quente e cheio de desejos e coragens. Um sorriso orgulhoso. Um sorriso solar.

O dia com suas sendas e sentidos solares. E as noites, densas e tumultuosas, noites de portas de carros batendo, de portas de bares abrindo e fechando, de quartos e escadas e salões de hotéis. Noites de faróis e viadutos seguidos a pé. Noites de luzes na avenida e de dança madrugada adentro. Noite, égua firme e galopante que trazia seu herói por cima de todas as outras coisas, noites dos dois, Por aí, como dois besouros bêbados, ele disse. Noites de cruzar a cidade até chegar a seu centro nervoso. Noites tranquilas, duas sombras projetadas na calçada, dois contornos de dois corpos projetados nos muros, nas paredes do quarto. Noites de ele cortando legumes na cozinha e a pergunta que ele faz Como foi a viagem? Ela diz que foi boa e passa a contar sobre o livro que lê e ele diz que é um livro bonito e também que lerão o que for indicando a vontade dos dois para sempre, até o dia final do cansaço maior. Cansaço?, ela diz.

É incansável. Na fala, nos gestos, em toda sua corporalidade e existência. É um animal irrefreável, uma fera falante, Uma faca afiada, ele ri, com os gominhos tirados do imenso pepino. Diuturnamente móvel, na cama, encaixada em seu tronco apolíneo, no escuro dizendo Esse amor é azul. Em todos os sonhos que narra e ele escuta ela é ágil, vibrante, volátil e azul.

Sempre móvel. E é desse movimento incontrolável – ela acha ela sabe – exatamente disso: o que ele gosta. É isso o que o faz agora retornar, pés sobre o chão, passos no asfalto, passos mais velhos. É isso o que ele agora pôde então entender ser a única coisa sem a qual já não vive. Esse velho soldado, esse velho guerreiro de passos mais lentos.

Era ele, portanto, – ela acha ela sabe –, não ela, quem precisava do trabalho do tempo. Com sua perseverança muda.

Está sentada no café e ali o espera. Feliz em sua espera, feliz e airosa, em seu casaco de lã, sua saia de listras, sua meia-calça, seu sapato preto de fecho vermelho. A folhear revistas e lembranças. O tempo não podia ser melhor: manhã de inverno ensolarada, o vento tremulando flores, folhas e cabelos. A luz do sol dourando as copas das árvores, destacando o voo dos pardais, chegando até seu rosto brandamente através da vidraça.

Ela sorve o café, o majestoso inverno, ela sorve essa luz, e o grato instante da espera.

(São Paulo, setembro de 2011)