sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

entulhos (III)


/Imagem de Alfred Kubin/


Mas continuo aferrado a esta cama, inteiramente vestido, apenas sem meu paletó, que está ali no mancebo, embaixo do chapéu que ganhei e não uso, desenhando desse modo o vulto de um homem.

Doente há quanto tempo?

Os colegas estranham essa ausência?

Não descumpro os horários no trabalho, mas frequentar uma festa já seria uma coisa muito diferente. Perda de hábito, eu acho. É possível que eu tenha sido arrastado, a vida toda, a lugares odiados pelos meus sentidos. É possível sim. Apenas para não magoar quem prefere me ver conversando, apenas para deixar as situações todas mais leves. Um homem - e ainda mais um homem jovem - deve dar, ao menos às  vezes, seus sinais de alegria.

Apenas pra não magoar... Mas seria difícil dizer que não é também uma razão um tanto nobre. Isso precisa ser reconhecido. Abrir mão de algo para agradar os outros. Eu sabia fazer isso - essa coisa meio nobre - antes.

O problema é ver-se inapto para a companhia. Isso afeta o seu trabalho, pouco a pouco. Porque você então já não consegue se comunicar direito. Passa a ter o desejo exclusivo de se enclausurar, metido em coisas que já deixaram de ser há alguma tempo algo parecido com sonhos, pensamentos, desejos.

Meter-se vestido e sob lençóis, em pleno verão. Falar, debater, convencer ou convencer-se começa a se tornar, para esse tipo de gente, impossível.

Essa pessoa aferra-se à cama, tem apenas vontades pequenas e absurdas como a de que o verão termine antes da época normal, começa a achar que a luz do sol é uma coisa realmente agressiva. Essa pessoa nem consegue mentalizar espaços abertos, passa dias procurando apagar da memória a experiência de um dia de sol.

Pois então. Prossigo fumando no escuro e não atendo ao celular. Vou me afundando pouco a pouco neste espaço bolorento e sem futuro, contaminado de lembranças, retalhos de memórias, tralhas, entulhos. As vozes que cruzam o silêncio agradável da noite. Vozes abafadas pela generosa distância do tempo.

Ando pelo quarto. Sento-me à mesa. Teve uma noite em que (agitado) resolvi sair. Entrei em muitos bares, perambulei a esmo, cheguei a me perder em ruas que eu há muito tempo conhecia. Acho que passei em frente ao prédio de Helena, mulher com quem saí há mais de um ano, mas não tenho certeza. Talvez pudesse bater à sua porta, iniciar uma conversa, chamá-la pra jantar.

Imagine uma pessoa como eu num restaurante. Uma pessoa assim procura se manter ignorada, esconde o rosto, fica passando os olhos num livro, tenta a todo custo não ser percebida. E eu iria como, então, jantar com Helena? Isto se Helena aceitasse, se aquela fosse mesmo sua rua, se ela ainda de fato morasse ali, se ela estivesse em casa àquela hora, se ela estivesse acordada, se ela quisesse me receber, se ela, enfim, de fato, verdadeiramente existisse. Nem é certo que eu estive em tal rua, nem que de fato eu tenha abandonado este ambiente. Na verdade é quase inacreditável que eu tenha feito isso. E a noite em questão, finalmente, quem sabe, pode ter sido nada mais que um delírio...

Uma pessoa como eu não escreve, Seu Mário, porque essa pessoa acredita, quando lê o que escreveu, que jamais poderia ter feito esse tipo de coisa. Não ela, essa pessoa aferrada ao silêncio.

(São Paulo, janeiro de 2002)



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