sexta-feira, 24 de novembro de 2017

# intermezzo

então eu te pergunto
os que carregam pianos
devem aplaudir
em pé 

[sempre em pé]
os que têm as mãos livres e podem apertar 

docemente 
o teclado?


quinta-feira, 19 de outubro de 2017

# tripalium

o correto talvez fosse
chamar isso aqui 
de trabalho

não consigo
isso 
é osso

se eu dissesse 
"é mais um trabalho
como outro 

qualquer"
seria covardia

ou coragem?
valentia

ou medo da última morte?

"qualquer outro
por que não?"

assume o mesmo risco do pescador
joga o anzol

pesca o aranzel do azar
continua jogando o anzol

para mais 
longe

descrevendo 
um

arco 
no rio

ou então faz como a dona de casa
que lava panelas sem fim

um trabalho como qualquer outro
onde há suor
sono

rigidez nas palavras

repetição e tédio
tipo apertar um botão

faxinar escadas 
corredores

correr com a escova 
os fedores
de um banheiro

sujar as mãos
molhar os pés

esfolar-se


depois de um avc conhecer finalmente
o sono

inútil

dos doentes

não é trabalho isso que eu faço
você também
quando escrevemos

escrever é roer os ossos
depois que o trabalho está feito




sábado, 7 de outubro de 2017

# xxx


amor é vertigem




# São Paulo, cidade finda



São Paulo de Juó Bananére, de Mário de Andrade
de Mano Brown, de Piva
São Paulo de Ruffato, de Beto Brant
São Paulo assobiada por João Antônio
sapato impactando o asfalto
São Paulo do samba
operária
preta
São Paulo italiana, nordestina
Febre terçã da mocidade
cidade loca, cidade viva
cintilante
Nunca foi só de trabalhar
a minha Paulicéia 
Não é de sol, não é de mar
São Paulo são idéias
(Celso Viáfora)
São Paulo da Liberdade, minha liberdade, a Avenida Liberdade, Alex, Mário cantando a cidade na garagem da periferia
a garganta da periferia
São Paulo do Bixiga, São Paulo sobretudo da Augusta
a Augusta dos bilhares, dos bares sujos, dos ofendidos e humilhados bêbados sujos
a Augusta da fedentina
da urina
a Augusta suja
São Paulo das enormes luas da Luz
moicanos levantados e as botas
trotando às duas
três
quatro, cinco horas da manhã
o dia a começar ruidoso na avenida Prestes Maia
gigante o dia, na fileira interminável de carros
a fila pela espera no orelhão
e o pregão do velhinho
pregando: "Olha a
ficha olha
a ficha olha..."
dia é bonito no Vale do Anhnagabaú
e ainda é mais bonita a noite 
do Anhangabaú
Caetano, Gil, Rita Lee 
cantando livres
a Avenida Liberdade
a Rua dos Estudantes
a Igreja dos Enforcados
a escravidão de São Paulo
os poetas ultrarromâticos
bêbados delirantes
o bairro da Liberdade, que eu frequentei no horário das aulas
manhãs geladas, luvas de lã
as vitrines frias da Libertade
a delicadeza dos bibelôs
o mundo nipônico, avesso de mim
abertura para o vasto mundo
livros, sebos, editoras
a praça da Sé imponente
e depois eu partia no ônibus londrino
pela Avenida Nove de Julho, pela Avenida Santo Amaro
vermelho
de dois andares
me fazia bombeiro
herói
me fazia gente o conforto
a velocidade
no terminal de ônibus, com Evaristo
meu amigo chileno
vivendo um banditismo chinfrim
furto e briga, depredação, vandalismo
bronca e bordoada da polícia ferroviária
na estação Prestes Maia
tinha alcunha, nome de batismo
não mordia, mas começava a latir
usando lábia
negociação
São Paulo de minhas divagações, minhas evanescências
São Paulo de dilequescências e obsolescência, São Paulo da espera
do duro tempo da espera
a vida a conta-gotas
noite de sono perdida
muitas vidas partidas
São Paulo da chuva
da fome
do desesepero coletivo diário
falta de cigarro
aflição
vida de sururu
Carolina olhando da janela de seu quarto de despejo
muitas pretas, mulheres pretas
a vida de sururu de São Paulo
as muitas Carolinas na favela
São Paulo a sobra e o desperdício da fartura
tiro grito
crack
fome
aids
- A cidade é veloz coisa nenhuma... - muda de marcha na subida o motorista baiano, e continua: - A cidade - limpa a testa suada com o lenço, mete o lenço no bolso, pigarreia forte: - A cidade... Cof, cof... caralho, ela é lenta
todos pendurados, moídos, todos amassados, consumidos
favor não pisar no motor - sentamos, deitamos, enfiamos malas, mochilas
nos calamos, anulados, de vez em quando um sonolento comentário
(todo ônibus lotado é um navio negreiro
a inscrição na parede) espremidos, sufocados, combalidos
sonolentos, amuados, sem tempero
dependurados nos ferros, como bicho
em sacrifício
como matadouro
um assento vaga e a polidez mal disfarça a pressa
senta o mais próximo, sempre
regra tácita
quem senta fecha os olhos
mergulha num doce sono
dorme frouxo, chega a roncar
passa vergonha
passa do ponto
mais vergonha
mais de uma vez eu dormi, e pesado, e passei do ponto, três
quatro
paradas
cinco
acordando assustado perto da garagem
já noite
rua desconhecida
divertindo-me a ideia de me perder dentro do próprio bairro
cigarro na mão, caminhando lento
subversão comezinha, uma cerveja a mais, um cochilo
uma escapada do serviço, uma pequena jogatina, uma pinga
São Paulo do meu tédio interminável
São Paulo da melancolia
da saudade
do Ibirapuera
da música “Paulista”
a voz da Vânia Bastos
minha banda new romantic adolescente
minhas especulações, minhas inconclusões
São Paulo da bufonaria de Oswald
São Paulo de Mário de Andrade
do teatro
São Paulo da mão de obra
pesada, brutalizada, mão de obra mal remunerada
São Paulo de atropelos
- naturalizações de atropelos -
Cidade-pesadelo
Endinheirada, cínica, fria
viveiro da mundana aberração
Eu conheci a poesia Mário de Andrade
depois a de Piva
Vinte anos depois conheci João Antônio,


e descobri que João Antônio, vindo a São Paulo, como jornalista, para fazer a cobertura da campanha de promoção da cidade, na década de 80, para o desenvolvimento do setor turístico e do comércio, tomou contato com o oba-oba da modernização conservadora da ocasião (houve tantas), depois de algum tempo vivendo no Rio de Janeiro
e registrou
em “Abraçado ao meu rancor” (1986)
suas melancólicas impressões da cidade,
sua indignação com a nova São Paulo.
João Antônio concluiu que
"A cidade deu em outra"
que ela ganhava definitivamente o lugar de capital dos negócios, elitizava-se, mantendo o alto índice de desigualdade e uma elite esnobe e antipovo,
que consumia o luxo material e propagava
o lixo intelecual.e
O paulistano médio e seu spírito tacanho, de imaginação curta.
Pelas periferias, imperam os jargões da prosperidade alcançada por meio de duros sacrifícios pessoais. E nos gastamos em sacrifícios pessoais, nos consumimos, na fumaça do trânsito, no noticiário
somos assassinados todos os dias
na TV
no rádio
na narrativa que se repete boca a boca
desde as rádios sintonizadas pelos taxistas e comerciantes,
os rádios dos carros do trabalhador pobre
classe média ralé
média
baixa
Paulo Honório no Nordeste do início do século XX
Os novos-ricos da São Paulo americanizada.
Se em 1906 o Rio de Janeiro viveu sua reforma urbana eurocentrista, elitista, antipopular e quis banir do centro a população preta
ofendida, pisada, expelida.
São Paulo não ficou atrás
São Paulo tem favela em todas as zonas da cidade
e construiu um novo centro, nem se ocupou de destruir o antigo, apenas o abandonou.
O centro perigoso à noite, o centro do assalto, do roubo, da briga
O centro disputado a tapa, na base da bala.
O centro antigo feio, terrivelmente feio das prefeituras
do PSDB.

Encerro perguntando o que diria, amigos,
João Antônio
sobre a São Paulo de João Dória
quem sabe
talvez:
- Continuarei com você, cidade finda!

"A cidade deu em outra"

Quem é que sabe?

# 25 de janeiro de 2017