quarta-feira, 25 de maio de 2011

# bovariana I

/Imagem de Odilon Redon/




É teu suspiro esse ruído, ele não vem. Provavelmente não, não viu? Agora vai eufórico à cidade, seus passos já pisaram resolutos essa lama, estão em plena estrada. Essa terra é pequena pra ele, ele quer galopar, alargar-se, mover-se. Porque afinal ele pode enfronhar-se de fato em tudo aquilo que em você não passa apenas de sonhos, desejos vagos, possivelmente até mesmo doença. É fato. Ele vai ser tragado pelas luzes da cidade, girar por elas e perder-se, consumir-se. Terá à sua mão os cheiros e as palpitações da vida errante, misturas e farturas de artifícios, frufrus e tranças, festas de cores e licores e sabores. Até quando durarão? Até quando: essas glórias pequeninas que viveram em segredo, esses prazeres mudos que compartilharam – até agora pouco, quando ele veio aqui, mediu-te de alto a baixo, para depois partir sem quase ter palavras - e que, quando vividos, eram imensas volúpias condensando os segredos do mundo? Eu pergunto até quando. Pois os segredos do mundo, eles todos, inteiros, virão de uma só vez à frente dele: por meio dos convites transbordantes dos hotéis, pelas portas dos bares de sorrisos palpitantes, pelas luzes dos prédios, restaurantes e teatros, pelos olhares novos, fulgurantes, estrangeiros, pelos aplausos vivos, pelas capas dos jornais. 


Tens à tua frente esse horizonte largo, a imensidão que te promete oferecer, talvez só por ofensa, o sol tranquilo de todos os dias. 


(São Paulo, maio de 2011)

terça-feira, 17 de maio de 2011

# moinho

não basta
o sol
não basta o dia
o meio-dia
a luz
não basta
a ruína
as vozes roucas dos coronéis
não basta
a brisa
na capela
o luar
a enchente
não basta ser
indiferente
ignorante
ou impotente
não basta o erro
incoerente
não basta o gesto
transparente
não basta o rio
o arrepio
o brejo o beijo e a beira e o brio
não basta a doce forma do vazio
não basta a dose
o inflamável
não basta o terço
irremediável
não basta a tosse
o tifo, a praga
não basta o gozo
a mão que afaga
não basta o insone
o que divaga
não basta o berço
nem a cegonha
não basta a cegueira
a imagem medonha
não basta a culpa
não basta a caspa
não basta a barca, o mar Cáspio, o casper
não basta o Batman
não basta o grito
o curto-circuito
a faísca da fúria
não basta a fogueira
não basta a busca
a bebedeira
nem basta andar a noite inteira
não basta o lar
o labirinto
não basta a besta
nem a flor bastarda basta
não,
basta!


# São Paulo, 2002.


sábado, 7 de maio de 2011

# negavela


/Imagem de Odilon Redon/

 
Toma a tua sopa em cadência. Que decadência, nega!, andando pela escada zonza. Nunca tens medo: do peão que fala em te foder, do besouro perseguindo teus mamilos, do corcunda do quarto 12, te olhando difuso, rendido à benzina. Nem tens medo do PM que passa os papelotes para a vila. Mas tua hora vem chegando, bem sabes. Rebolas menos agora, e olha muito agora, nunca olhaste tanto: para as ambulâncias, para as enfermeiras, e o que te interessa no corcunda são as ampolas que ele guarda. Uma sombra, nega – são as patas absurdas perseguindo teus requebros. Tens o paraíso ameaçado - os discos, a cachaça, a pensão que te segura – tuas unhas não conhecem mais esmaltes, e ainda que apeles em usá-los, não inibirás tua falência, teu descascar em cores fortes e suaves. Nunca foste suave, os olhos sempre injetados, o rosto, pedregulho maduro, sorria por convicção – nunca foste levada! Andas aparvalhada, e tua coragem agora é cômica. Amedrontas-te com o mínimo ruído, de baratas que se aventuram nas gavetas, de traças que ousam por tuas roupas, teus papéis. Não tens tempo, ou o tens em excesso, como fartas águas de rio estreito. Não suportas o tempo, contado em programas de tv, em abrir e fechar de portas da vizinhança, em ecos, silêncios, espasmos, engulhos, vapores, vagares. Gostas de ouvir o sexo da universitária do quarto vizinho, que sempre leva para farrear uma duas três amigas. Parecem gatas. Refestelas-te? Talvez gostasses de participar? Não, ficas compungida, horrorizada, te deitas na expressão bovina de quem nada viu. Mas, sim, depois desces, sempre a soprar tuas sopas, dando pequenos bocados de quando em quando, vai conferir quem são as moças. E são sempre lindas, e nunca são as mesmas. Onde a mocinha as encontra? Tu queres tetas, nega? Negas! Queres gemidos mais dóceis que os das garras ásperas dos Mores Majores Belchiores? Um buraco começa a escavar o teu peito, já notas – e arrotas, solitária, cenas de outras paixões... Vendaval... O de barba do bar te encarando. Dizem-no alinhado, prudente, professor. Seu olhar cristalino desenha memórias no ar. Pensa na infância, é o que dizem. E tu, nega, na infância? Não te ocorre voltar ao passado, concreto carcomido entre tábuas rangendo, tu arrotas, solitária. A cama do homem de olhos macios: alinhada, prudente. É o que queres? Amavas Amarildo, que não retornou mais de Santos depois que viveras o aborto. Sangue morto. Mas teve o passeio de barco com cravo amarelo nas tranças. E um vinho importado, bebido no Parque da Luz, ao som de foguetórios. Era Réveillon. Ano após anos, tudo passa,  Amarildo e a beleza de tuas tranças, os Majores e os Sertores e os Minores, olhos mortos absortos de abortos, olhos leves espumosos veludosos. Tudo passa. As meninas entre risos nas escadas, as famílias com sacolas e crianças, viaturas e ambulâncias no silêncio. Tudo passa. Nega fica. Nunca atiraste tuas bitucas nos passantes, nunca apelaste ao professor de barba fofa. Mas é a mesma coisa, nega, ter escola e ter maldade.


São Paulo, janeiro de 1998.