segunda-feira, 3 de agosto de 2020

# sobre um pijama estragado



Foi por causa de um pijama velho, já virando farrapos, que notei uma alteração significativa em minha percepção do tempo. Ao ver o tecido com furos, puindo de alto a baixo, tanto a calça quanto a blusa (é um pijama de inverno), pensei indignado "Mas já? Comprei isso aqui foi outro dia..." Uma lufada de sanidade vem então em meu socorro: Não foi, não foi outro dia. Há pelo menos cinco anos ganhei essas peças de flanela listrada.

Então percebo que outros equívocos do tipo vêm ocorrendo. Passando por ruas conhecidas, me espantam as mudanças no comércio. A FNAC de Pinheiros estava aí outro dia. A padaria Letícia da Heitor Penteado também: outro dia. O meu bar preferido, o BH da rua Augusta, foi reformado esses dias. Também a linha verde do metrô, até outro dia, terminava na Ana Rosa. Não, nada disso é recente, me alertam os conhecidos: esse outro dia foi há cinco, às vezes dez ou mais de dez anos.

Claro que São Paulo é um prato cheio para pessoas com esse tipo de problema: a cidade muda a cada dia, numa velocidade vertiginosa. Bares, botecos, baladas, bibocas abrem e fecham num piscar de olhos.

Mas a culpa não é só da urbe e sim também de minha memória equivocada, pois o lapso se aplica não apenas às referências da cidade, mas a um pijama estragado. Esse livro Crepúsculo saiu há pouco. Essa nova onda Netflix. O novo aplicativo chamado Instagram. (Os mais infantis ou juvenis conheço um pouco pelas minhas filhas). São algumas de minhas frases miseravelmente equivocadas, meu modo relapso - lapso ou colapso - na lida com o tempo, ou melhor, no entendimento sobre a duração das coisas ou, apenas, o avançar de minha idade.

Estamos envelhecendo o tempo todo, alguém poderá me acudir. Sim, mas a sensação de começar a envelhecer só me pegou agora. Afinal, sem tendência genética à calvíce e aos cabelos brancos, venho sendo enganado pelo tempo mais que alguns conhecidos. Mas um dia desses - foi uma dia desses mesmo, eu juro - vi que um fio branco apareceu em minha barba. E além disso, notei outro dia - mesmo - que comecei a ganhar algumas rugas no rosto.

Não é uma sensação ruim. Sempre acreditei na passagem do tempo como fator favorável - sinto que o tempo joga a meu favor, que eu aprendo, melhoro e cada vez consigo andar pela sombra com menos desespero, talvez por esperar da vida não muito mais que paz com Dora e Maria, alegria mansa, meus livros e escritos, minha profissão de educador, cheia de desafios e delícias, os amigos e amigas que amo e com quem me entendo. E um amor que a vida me dá de presente.

Além de um pijama novinho que as pequenas me deram hoje de aniversário.

(Ia dizer que, um dia desses, surgiu uma pandemia por aí, mas não quero estragar a croniquinha de aniversário.)

Já vem chegando a madrugada: bem-vindos sejam meus quarenta e cinco anos.


# São Paulo, 10 de agosto de 2020.

4 comentários:

  1. Muito legal! Parabéns! E não pode falar "seriado"...

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    1. Ahaha, seriado não pode mais também? Mas até outro dia aí... Muito obrigado pela visita, queridão!

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  2. Parabéns meu amigo. Contigo fui aprendendo a viver melhor nesse mundo e sim o tempo nos favorece. Mas como nada é de graça no universo (2 lei da termodinamica) tambem entendo o pequeno incômodo. Essa é graça da vida. Abraços e parabéns também pelo texto

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    1. Querido Jacó! Sempre por perto, mesmo que não fisicamente, com sua física afiada! Forte abraço saudoso!

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