terça-feira, 11 de dezembro de 2012

# finado



Neste dois de novembro eu penso em Alaor Guilherme Christiano. Não só na sua morte, mas principalmente em tudo o que ele foi enquanto pôde tocar o que se tem para tocar nesse lugar incompreensível a que chamamos vida. 

Pensar em Laor me faz lembrar de Saramago: "o muro que separa os vivos uns dos outros não é menos opaco que o que separa os vivos dos mortos". (O ano da morte de Ricardo Reis. Cia das Letras, 2011, p. 305).

Há muitas formas de vida, como também há muitas formas de morte.

Laor viveu como trompetista e fiscal da CMTC. Viveu também como bêbado e boêmio. Foi depois um enfermo zeloso e mais tarde um enfermo abusado. Foi um avô apaixonado e divertido e um homem amargo, triste e muito explosivo.

Laor morreu também várias mortes. Morreu quando viu o pai sendo chupado pelo álcool no interior de São Paulo, e com essa vieram sucessivas outras mortes que eu não vou registrar.

Sei que morreu de novo pelos seus sessenta e poucos anos, quando apagou a chama do trompete e o câncer na garganta distorceu sua voz, sua boca, seu rosto, sua imagem. Retalhou-se em pouco tempo a cara do meu vô; ele passou a ser, picturalmente, outro homem.

Morreu também quando voltou do hospital, um canudo enfiado na narina e estendido até o estômago - É por aí que ele come agora. - explicou minha mãe, apontando o canudo. Só então visualizei meu "novo avô". - Dá um abraço no vô.- Ela disse. Eu fugi para o quintal dos fundos. Impossível abraçar aquela versão desfigurada de Alaor. Queria de volta o meu avô. Mas foi feito o luto. E o novo Alaor entrou em minha vida. Ensinou-me a gostar de jazz, apresentou-me Bienvenido Granda, começou a fabricar instrumentos. 

Morreu fisicamente de vez no ano de 1998, e sua morte abateu não só a mim, mas a meus irmãos e, mais ainda, a minha mãe. A sensação de ter perdido alguém pela primeira vez na vida - não era verdade, outros conhecidos já tinham seguido antes -, alguém para valer, alguém de verdade, isso não, nunca tinha ocorrido.

Alguém em quem pensar num dia dois de novembro.

Fui avisado de sua morte pelo telefone. Agarrei o paletó no guarda-roupa de madeira, cheirando à naftalina, juntei um lençol e, sem motivo algum, peguei um touca. Touca para quê, para cobrir o crânio de um morto?  

Juntei as roupas no armário, separei a veste mortuária que envolveria meu avô no caixão. 

Fiz isso e fui buscar D. Aparecida, minha avozinha surda e desesperada. Levei-a para diante de uma imagem de Nossa Senhora e uma vela e rezarmos, abraçados, entre lágrimas. Ela surda, ele trompetista. O ruído do metal devia tocá-la pelos olhos de Laor, por sua alegria, bêbada ou sóbria. Minha avó aprendia português com ele. "Ele me ensinou tudo", ela disse, naquela tarde de poucas palavras.

Laor é a única pessoa com quem sonho intensamente pelo menos uma vez por ano, a única pessoa por quem sempre peço para que, lá nas longitudes, esteja, não exatamente descansando, mas tranquilo, de preferência tocando alguma coisa com que se possa fazer som. Deve existir alguma forma de fazer isso, lá nos longínquos do mundo...

Sei que sexta-feira de finados, hoje, quis levar Dorinha para ver o circo. Uma vontade que apareceu assim que acordei. Lelê gostou da ideia, Dodó também; Maria iria fosse como fosse - mas a verdade é que a bichinha parece aprovar tudo, com aqueles olhos matinais esplendorosos. Tudo arrumado, partimos ao circo mais próximo.

Entre as histórias que conto pra Dora, Laor por vezes aparece. É um velhinho simpático e engraçado, entusiasmado e sabichão. Esse velhinho certa vez levou o neto de oito anos para o circo.

Dorinha vibra com a descrição das luzes, a armação da lona tão particular e a escolha decisiva antes de entrar para o espetáculo:

"- Pipoca, algodão-doce ou maçã-do-amor?"

- Só um, papai?

- Sim, tinha escolher um só, porque Laor não tinha dinheiro, não. Mas também era melhor assim, pra curtir melhor... Qual você quer, Dodó?

Pensa um pouco:

- Pipoca.

- Certo.

Então Laor entrava com o neto sob as luzes faiscantes, o cheiro de lona, de ferro e de madeira. Ali estaria o palhaço. Depois o macaco. Por fim o leão - este bicho que ficara na jaula por uma semana e que o menino via sempre quando ia ao armazém. Um bicho comido de feridas. Um bicho velho, sujo e fedido. Um bicho fascinante. A meninada passava mesmo meia hora aguardando que ele se virasse, que saísse de seu sono e se arrastasse pelo interior da jaula, para admirar seu peso e sua força, num misto de medo e delícia.

Aquele bicho aparecia no tablado, saltava entre dois círculos de fogo, obedecia ao chicote do acrobata. Metia medo na plateia e também no palhaço. Ah, o palhaço... O palhaço era o parceiro da plateia, o fio que conduzia o espetáculo pelo caminho do riso, dando a tudo um contorno de coisa leve e inventada. Eram pra ele, mais que pros outros, aquelas luzes.

Pois o circo em que levei Dorinha tinha também palhaços, mas não picadeiro. Por sorte os bichos eram apenas réplicas, em tempos de consciência ecológica que não atrapalha em nada a imaginação dos que sabem e querem imaginar. O que atrapalhou foi a música estrondosa, a profusão de luzes estrambóticas e a rapidez que em tudo imperava.

A habilidade dos artistas tinha a forma fria de uma eficiência. A sucessão dos gestos ousados e até mesmo arriscados, pela repetição e insistência, tornavam-se mecânicos - não mágicos -, e em alguns momentos concluí que parecia ver, não corpos desafiando os sentidos, mas uma competente exibição de computação gráfica.

E Dorinha? Teve medo da música e manteve os ouvidos tampados com as mãos, demorou a animar-se com a presença dos palhaços. Eu ainda acho que o espetáculo foi pouco envolvente pela falta de delicadeza, pelo excesso. Em vez de ocupar as tradicionais arquibancadas, o público sentava-se em cadeiras distribuídas em fileiras e, em lugar do picadeiro, havia um palco. Tudo produzindo distanciamento, tecnicismo, exuberância fria, eficácia.

Mesmo assim me diverti. Dorinha também, com a pipoca que compramos ("Só uma, né, pai?", ela lembrou). Lelê, como eu, gostou com ressalvas. Maria, com os olhos sempre luzindo, se não se divertiu enganou  muito bem.

Espero ter, de alguma forma, divertido Laor, e que a distância do palco e a eficiência pobre dos acrobatas não tenham conspurcado minha humilde homenagem neste dois de novembro.

- Você viu, Dó, o circo do Laor?

- Era assim, papai?

- Não, não era, não. A gente ainda acho um outro parecido. Mas você gostou?

Fez um sim com a cabeça, visivelmente feliz.

Essa alegria chega até Laor?


(São Paulo, 02 de novembro de 2012.)


11 comentários:

  1. Vez em quando penso nele, assim, com saudades também, que foi minha pequena experiência de avô.

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  2. Caramba, Adriano, que lindo. O texto tomou movimento e cor na minha cabeça, viajei aqui...Obrigado e parabéns pelo texto! Grande abraço, Arthur Chacon.

    (Pensei muito na música "Espelho" do João Nogueira, sabe? Foi minha música de fundo do seu texto).

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  3. Beta, sabia que algo desse texto te diria respeito mesmo. Bjão.

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  4. Arthur, que honra tê-lo como leitor. Vou ouvir a música do João Nogueira para sacar sua leitura. Valeu mesmo pela visita. Abraço, queridão!

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  5. Você sempre falava do seu vô trompetista, já tinha uma imagem bonita dele, agora só melhorou. Adorei o texto, muito lindo. A música do João Nogueira é um pedrada de emocionante, boa referencia Chacon.
    Abraço pros dois!

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  6. Lindo texto. Você sempre falou do seu vô trompetista, já tinha uma imagem linda dele, agora só me impressionou mais. A música do João Nogueira é uma pedrada de emocionante. Boa Chacon.
    Abraço pros dois!

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  7. Ah, e tem que ir no Circo Zanni!!! Agora eles pararam, mas vou te manter informado. Tutti Famiglia pra todo lado.

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    1. Valeu, Thom, acho que era o Zanni mesmo que eu tava procurando. Bjão! E valeu pela leitura.

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  8. Precioso, Adriano. Ah, lembrei tanto do meu avô que não era trompetista mas que adorava nos levar às pequenas aventuras. Coisas de avô. Bjs. Saudades.

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  9. Adélia, suas visitas são sempre um presente. Obrigado. Bjão.

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