terça-feira, 20 de dezembro de 2011

entulhos (IV)


/Imagem de Alfred Kubin/


Mas nada que não me cansasse mais ainda a fala. Nada que não me fizesse sucumbir ainda mais. Era a voz de veludo, era a vez, era ela, era quem?

Era Helena.

A palavra roçou o meu rosto. Tanto assim que acordei, e senti o calor sufocante do dia, senti minha fome já há um tempo ignorada, a sede em minha boca cada vez mais intensa com o consumo do tabaco. No escuro (era meio-dia?) acendi um cigarro, e o máximo que pude fazer foi servir-me um gole d´água.

Muito bem, mais um nome inventado. Mais um rosto no escuro, mais uma forma intocável. Mais insularidade.

O outro como continuidade do mesmo. O outro como entreposto para um pórtico fechado. O outro como continuidade.

É assim a doença?

Asas e bicos nos sonhos.

Era assim?

Seu Mário diria que amar é reunir seres aflitos num viveiro. (Os pombos, o câncer). Eu ouviria isso, se pudesse escutar suas palavras, ou se alguém (eu jamais) pretendesse escrevê-las.

Seu Mário e seus arrufos, que imagino. Eu os ouviria, se me dispusesse.

A voz dos outros (mesmo a de Ernesto Campos, amigo meu) já me causa arrepios. Em geral, os sons que saem de boca humana se misturam em meus ouvidos e se convertem em acordes distorcidos, sopros agudos, cortantes, terríveis para minha audição a cada dia mais sensível.

Seria assim também a voz de Helena, com o passar do tempo? - esse tumulto ruidoso. Um ser aflito engaiolado? Como tudo o que se move do passado e deseja ganhar algum lugar entre estes dias, como tudo o que pretende lançar seus sinais de vida, respiração, hálito, feminilidade, coisas da ordem do espanto, vida em comum, luz do sol e dos postes, labaredas, restaurantes, crepitações, brilho de olhos.

Brilho de olhos de pássaro. Asas e bicos nos sonhos. Brilho e frescor de um jato d'água alcançado na pia, para afastar o tumulto.

Puta que o pariu, Seu Mário! Eu tenho todo dia enterrado esses pombos, sentindo em minha boca suas penas, a garganta ressentindo o sumo horrível dessa carne espumante.

E agora vem Helena.

Concentrado nesse nome, tento abafá-lo, convertê-lo em imagem obscura, numa mancha, um borrão, alguma forma de existência parecida com lembrança, com esta paralisia com que posso orquestrar - só assim - o espírito quieto do mundo.

(São Paulo, janeiro de 2002) 

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