quinta-feira, 19 de setembro de 2024

# Aporia e pó

                                                                     
Sacerdotisa de Delfos (1891) de John Collier
Sacerdotisa de Delfos (1891) de John Collier


aporia e pó

no horizonte da cidade 

bomba

fumaça

fogo

inundação

aporia e pólvora

cidades dominadas

por velhas chagas do passado

não excluindo discursos

poemas

e orações

fuzis

chamas

queimando demônios

e fotografias

fogo

cheiro de fogueira e de incêndio

no ar partículas de chumbo

“finalmente”, alguém ri, esfrega as mãos

“finalmente a cidade incendiada”

legiões gritam 

acendem tochas

soltam rojões

lançam gasolina nos canteiros da avenida

se inflamam na profanação 

da fé

no seu calor 

a pura chama inquisidora

ignis purificat animam

a minha alma vai se preservar

se eu queimar a terra

se atear fogo à cidade

se meu espírito for incendiário

se eu for, por minha conta

o próprio fogo 

que devora a tudo, a todos

e a mim mesmo

aporia e pó

fuligem

vertigem

miragem

o sonho incendiado da civilização

o solapar do sonho aquecido do sol

a força ígnea amiga do homem

a força da fogueira inaugural

em cujo entorno 

contamos 

nossas primeira histórias

aporia e pó

e já não sei o que é possível ver

além do horizonte

fuliginoso, plúmbeo

o rancor do dia no azedume 

das gargantas secas, dos olhos irritados

o odor constante 

de fogueiras 

ardendo

pela vizinhança

não só a cidade

em aporia e pó

pelo país inteiro

o planeta

a peste 

se espalha

amealhada aos sonhos egoístas 

de fazer compras, cuidar dos filhos, ver os jogos olímpicos

cozinhar, sorrir, cantar, sonhar, esquecer

da aporia e do pó

o que sobra 

da escola em Jabaliya, norte de Gaza

o que sobra de nós

depois que nos matamos

em aporia e pó 

pólvora fogo

palavras sagradas

o puro ódio 

da chama pura


# São Paulo, 15 de setembro de 2024

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