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A família grande (René Magritte) |
A crítica como tarefa de Sísifo?
Li a entrevista à Folha concedida pela exímia tradutora Aurora Bernardini, grande pesquisadora que deve ser reverenciada pelos serviços prestados ao mundo das letras no Brasil. Apesar de grandiosa intelectual, a autora deixa clara a velha posição eurocêntrica e, nessa parte, a entrevista dá uma preguiça danada.
Mas o que parece ter inflamado o pessoal aqui da rede e que me espantou muito: sua reação à antiquíssima querela entre forma e conteúdo nas artes.
Poxa vida, parece que o pessoal tá deixando de ler os clássicos sobre o assunto, ignorando que já existem certos consensos: quanto tempo faz que já ficou claro que literatura não é forma nem conteúdo, mas as duas coisas, a fricção entre elas, a tensão, o jogo instigante entre a verdade e a mentira? Antes de abrir esse debate nas redes, o pessoal precisaria fazer a lição de casa.
Esse papo começa, pelo menos (para não falar dos antigos), com o Formalismo Russo ou, na Europa, o Estruturalismo, passa por Sartre e tem diversas abordagens aqui no Brasil: José Veríssimo, Afrânio Coutinho, Antonio Candido, Alfredo Bosi, Otto Maria Carpeaux, Ferreira Gullar, Roberto Schwarz, Benjamin Abdala Jr, Leyla Perrone-Moisés, José Luiz Lafetá, Luís Bueno, Maria Thereza Fraga Rocco, entre tantos e tantas outras.
Tudo bem que um novo contexto reacende a chama de um velho debate, mas ignorar solenemente o tanto que se caminhou sobre o assunto, na academia e entre os autores (como Machado de Assis ou Mário de Andrade), chega a ser desrespeitoso. Formalismo puro é tão pobre quanto conteudismo puro -- mas isso, convenhamos, já estava claro. Só porque o candente e importante termo "lugar de fala" emergiu com tudo para reaquecer os estudos literários não significa que nasceu ontem a discussão sobre lócus enunciativo x esquematismo formalista. Parece que estamos lá atrás, tentando ainda decidir quem estava certo entre o subjetivismo romântico e o estetismo parnasiano. O modernismo já aconteceu, gente. Forma e conteúdo, os dois, né, constitutem a literatura, num jogo dialético, certo?
Não haveria essa forma se não fosse esse o conteúdo e não haveria esse conteúdo se não fosse essa forma.
Não existe conteúdo no vazio, desencarnado de palavras, nem palavras puras, em plena abstração, sem tangência com a realidade.
Vamos fazer a lição de casa, por favor!
[A escolha da pintura de Magritte serve como pergunta e provocação: o que conta mais na tela é a forma ou o conteúdo? Fica como questão para nós.]
Leitura imprescindível
Ainda a propósito da velha querela forma x conteúdo, acabei de iniciar a leitura de um livro bastante útil e muito instigante para quem se interessa pelo debate: "Eu escreve -- dilemas das escritas de si", organizado por Gabriela Aguerre e Natalia Timerman e lançado pela Record agorinha mesmo, no mês passado.
[Gosto do subtítulo, mas não do título, mas certamente isso é ranhetice minha.]
O fato é que comecei a leitura, já achei a proposta muito interessante e, folheando, gostei muito das abordagens do/as autore/as, com questionamentos que, para mim, recolocam em novos patamares a discussão sobre a escrita sobre si, renovando-a.
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Eu escreve - dilemas das escritas de si. Aguerre e Timerman (Org.), Record, 2025 |
Mas uma coisa me afligiu sobremaneira no livro e ela se liga ao meu incômodo com relação ao modo como se tem feito a discussão sobre a entrevista com a grande Bernardini (que, sim, é bom reforçar: tem traços de eurocentrismo): a assustadora escassez de clássicos da crítica nacional nas referências bibliográficas!
Muitos, muitíssimos autores estrangeiros recentes, gente boa, boníssima, mas (me pergunto indignado) por que, por que razão ignorar as incansáveis contribuições que críticos e escritores brasileiros dedicaram ao assunto da relação entre sujeito escritor e obra escrita?
Para citar uma ausência imperdoável: não consta, salvo engano, um livro -- simplesmente indispensável para o debate -- "Ficção e confissão", de Antonio Candido. Por que isso? Num país de memoricídios seguidos, quem mexe com literatura (essa coisa antiga e, para muitos, antiquada ou até obsoleta) tem de se comprometer com o esforço de não deixar lacunas, de ajudar na progressão das ideias, não permitir descontinuidades, aceitar o bastão do debatedor anterior, em vez de abraçar o que não é exatamente novidade em nossa crítica -- repetindo a péssima mania de se apressar em oferecer uma cadeira na mesa para as novidades estrangeiras.
Leram o que o Candido escreveu no imprescindível Formação da literatura brasileira (nos anos 50!) sobre a relação entre biografia e criação literária? Ele dá toda a letra dessa discussão: em que medida a vida do autor pode ser profícua para pensar sua produção literária?O que se faz, por exemplo, em caso de autores cuja biografia é, objetivamente, irrecuperável? Vou conferir, mas não encontrei essa fonte em nenhuma lista bibliográfica da publicação da Record e isso me decepcionou muito mesmo e diminuiu, logo de cara, minha admiração pelo livro.
Que mania é essa, entre nós brasileiros, de queimar as pontes com as conquistas do passado nacional, de desperdiçar esforços acumulados ao longo do tempo -- expressos em ensaios, artigos, materiais didáticos, manuais, estudos, cartas, manifestos, romances, crônicas, poemas, dissertações, teses, palestras ou aulas?
E o ensaio do Machado sobre a questão da nacionalidade? E o Prefácio interessantíssimo [mesmo] do Mário de Andrade? E os seis volumes da coleção do Afrânio Coutinho? E o livro do Sevcenko Literatura como missão? E o Cultura e sociedade, do Carlos Nelson Coutinho? E o 1930: a crítica e o Modernismo, do Lafetá? E o ensaio do Gullar sobre vanguarda e subdesenvolvimento?
Todos títulos consagrados e fundamentais para a discussão sobre a relação entre ficção e realidade, que é, como sabemos, o tema, por excelência, da literatura desde que o mundo é mundo. E ele foi muito explorado pelos nossos grandes autores, gente que queimou as pestanas e pode entregar, de bandeja, uma série de perguntas essenciais para o debate contemporâneo sobre a escrita sobre si mesmo. Eu me pergunto novamente: por que os autores (com raríssimas exceções) não passaram por eles?
Que mania é essa de se apressar em dar louros à crítica estrangeira? Por que essa quantidade imensa (e irritante) de textos traduzidos ou vindos diretos da gringa? Sinceramente, soa-me a fetichismo e a pieguice.
Apesar disso, muito entusiasmado
Quando chegar ao final da leitura que, apesar do problemas apontados, estou adorando e achando muito valiosa, faço uma nova postagem para dar meu (modesto) veredito.
Parabéns às organizadoras e a todo/as o/as autore/as!
Apesar das críticas, estou lendo com devoção e achando o livro indispensável.
Bragança Paulista, 04 de setembro de 2025
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