terça-feira, 20 de dezembro de 2011

# resquícios do leste




O Nievá, e a consciência torturante de um vazio que não se rende.


(São Petersburgo, janeiro de 2007)

entulhos (IV)


/Imagem de Alfred Kubin/


Mas nada que não me cansasse mais ainda a fala. Nada que não me fizesse sucumbir ainda mais. Era a voz de veludo, era a vez, era ela, era quem?

Era Helena.

A palavra roçou o meu rosto. Tanto assim que acordei, e senti o calor sufocante do dia, senti minha fome já há um tempo ignorada, a sede em minha boca cada vez mais intensa com o consumo do tabaco. No escuro (era meio-dia?) acendi um cigarro, e o máximo que pude fazer foi servir-me um gole d´água.

Muito bem, mais um nome inventado. Mais um rosto no escuro, mais uma forma intocável. Mais insularidade.

O outro como continuidade do mesmo. O outro como entreposto para um pórtico fechado. O outro como continuidade.

É assim a doença?

Asas e bicos nos sonhos.

Era assim?

Seu Mário diria que amar é reunir seres aflitos num viveiro. (Os pombos, o câncer). Eu ouviria isso, se pudesse escutar suas palavras, ou se alguém (eu jamais) pretendesse escrevê-las.

Seu Mário e seus arrufos, que imagino. Eu os ouviria, se me dispusesse.

A voz dos outros (mesmo a de Ernesto Campos, amigo meu) já me causa arrepios. Em geral, os sons que saem de boca humana se misturam em meus ouvidos e se convertem em acordes distorcidos, sopros agudos, cortantes, terríveis para minha audição a cada dia mais sensível.

Seria assim também a voz de Helena, com o passar do tempo? - esse tumulto ruidoso. Um ser aflito engaiolado? Como tudo o que se move do passado e deseja ganhar algum lugar entre estes dias, como tudo o que pretende lançar seus sinais de vida, respiração, hálito, feminilidade, coisas da ordem do espanto, vida em comum, luz do sol e dos postes, labaredas, restaurantes, crepitações, brilho de olhos.

Brilho de olhos de pássaro. Asas e bicos nos sonhos. Brilho e frescor de um jato d'água alcançado na pia, para afastar o tumulto.

Puta que o pariu, Seu Mário! Eu tenho todo dia enterrado esses pombos, sentindo em minha boca suas penas, a garganta ressentindo o sumo horrível dessa carne espumante.

E agora vem Helena.

Concentrado nesse nome, tento abafá-lo, convertê-lo em imagem obscura, numa mancha, um borrão, alguma forma de existência parecida com lembrança, com esta paralisia com que posso orquestrar - só assim - o espírito quieto do mundo.

(São Paulo, janeiro de 2002) 

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

entulhos (III)


/Imagem de Alfred Kubin/


Mas continuo aferrado a esta cama, inteiramente vestido, apenas sem meu paletó, que está ali no mancebo, embaixo do chapéu que ganhei e não uso, desenhando desse modo o vulto de um homem.

Doente há quanto tempo?

Os colegas estranham essa ausência?

Não descumpro os horários no trabalho, mas frequentar uma festa já seria uma coisa muito diferente. Perda de hábito, eu acho. É possível que eu tenha sido arrastado, a vida toda, a lugares odiados pelos meus sentidos. É possível sim. Apenas para não magoar quem prefere me ver conversando, apenas para deixar as situações todas mais leves. Um homem - e ainda mais um homem jovem - deve dar, ao menos às  vezes, seus sinais de alegria.

Apenas pra não magoar... Mas seria difícil dizer que não é também uma razão um tanto nobre. Isso precisa ser reconhecido. Abrir mão de algo para agradar os outros. Eu sabia fazer isso - essa coisa meio nobre - antes.

O problema é ver-se inapto para a companhia. Isso afeta o seu trabalho, pouco a pouco. Porque você então já não consegue se comunicar direito. Passa a ter o desejo exclusivo de se enclausurar, metido em coisas que já deixaram de ser há alguma tempo algo parecido com sonhos, pensamentos, desejos.

Meter-se vestido e sob lençóis, em pleno verão. Falar, debater, convencer ou convencer-se começa a se tornar, para esse tipo de gente, impossível.

Essa pessoa aferra-se à cama, tem apenas vontades pequenas e absurdas como a de que o verão termine antes da época normal, começa a achar que a luz do sol é uma coisa realmente agressiva. Essa pessoa nem consegue mentalizar espaços abertos, passa dias procurando apagar da memória a experiência de um dia de sol.

Pois então. Prossigo fumando no escuro e não atendo ao celular. Vou me afundando pouco a pouco neste espaço bolorento e sem futuro, contaminado de lembranças, retalhos de memórias, tralhas, entulhos. As vozes que cruzam o silêncio agradável da noite. Vozes abafadas pela generosa distância do tempo.

Ando pelo quarto. Sento-me à mesa. Teve uma noite em que (agitado) resolvi sair. Entrei em muitos bares, perambulei a esmo, cheguei a me perder em ruas que eu há muito tempo conhecia. Acho que passei em frente ao prédio de Helena, mulher com quem saí há mais de um ano, mas não tenho certeza. Talvez pudesse bater à sua porta, iniciar uma conversa, chamá-la pra jantar.

Imagine uma pessoa como eu num restaurante. Uma pessoa assim procura se manter ignorada, esconde o rosto, fica passando os olhos num livro, tenta a todo custo não ser percebida. E eu iria como, então, jantar com Helena? Isto se Helena aceitasse, se aquela fosse mesmo sua rua, se ela ainda de fato morasse ali, se ela estivesse em casa àquela hora, se ela estivesse acordada, se ela quisesse me receber, se ela, enfim, de fato, verdadeiramente existisse. Nem é certo que eu estive em tal rua, nem que de fato eu tenha abandonado este ambiente. Na verdade é quase inacreditável que eu tenha feito isso. E a noite em questão, finalmente, quem sabe, pode ter sido nada mais que um delírio...

Uma pessoa como eu não escreve, Seu Mário, porque essa pessoa acredita, quando lê o que escreveu, que jamais poderia ter feito esse tipo de coisa. Não ela, essa pessoa aferrada ao silêncio.

(São Paulo, janeiro de 2002)



sábado, 26 de novembro de 2011

resquícios do leste



Subúrbio da cidade de Moscovo.

Vista do meu quarto para a neve.

Silêncio.

Só o piano de Sviatoslav Richter, tocando

- no meu computador -

e em tudo o que é frio neste mundo.


(Moscovo, janeiro de 2008)

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

# dorinha



                                                                Você é tão bonita quanto a utopia

Ela acorda antes de mim, fatalmente. 

Enquanto vou tentando abrir os olhos e encarar o frio do dia, ela já saltou da cama, circulou pelo quarto, e agora corre pelos cômodos, falante. Inútil convencê-la das delícias do sono em manhã tão gelada. Inútil também é tentar agarrá-la, aninhá-la em meu colo, iludi-la com histórias.

Chegou a hora do dia e ela logo me convence com seu murmúrio de seda que nós devemos levantar, pôr a cozinha em ação, descascar mexericas, picar o mamão e torcer pela vinda do sol.

Tem apenas dois anos e claro que não me diz propriamente nada disso – mas sei o que ela quer, com sua alegria matinal e com o que pra mim é o chamado mais irresistível de todos que ela já conhece – Papai –, escandido lentamente, com a repetição deliciosa da bilabial.

O sol aparece e então vejo que a manhã pode ser realmente uma festa.

Digo o verbo “passear” na forma musical que sempre uso e isso basta para que ela saia correndo pela casa toda, repetindo a música, batendo palmas, derrubando objetos.

Passo o café, sirvo-lhe fruta, suco e um pequeno pedaço de pão com manteiga (ela lambe a manteiga, morde um naco insignificante do pão), visto-lhe um casaco bem grosso e uma touca de lã, mas com suas luvas não chegamos a um acordo. Como enluvar mãozinhas tão pequenas? Como fazê-las entender que em cada buraco deve encaixar-se apenas um dedo e que nenhum deles – buraco e dedo – pode ficar sobrando? (Eu deveria obviamente ter pensado num outro modelo de luvas, daquelas sem divisão para os dedos). Ela até que é paciente com a minha inabilidade. Mas cinco vezes o polegar e o médio encontram o mesmo espaço. E isso porque estamos só na mão esquerda. 

Quem desiste sou eu. Puxo as mangas do casaco de modo a deixar suas mãos protegidas, coloco seu corpinho animado no carrinho de passeio e logo estamos na rua, com sol, sem nenhum vento, apenas com o ar muito frio.

Tudo lhe chama a atenção: gente, árvores, cachorros, barulhos. Não penso como era comigo quando tinha sua idade. Não me vem qualquer pergunta na verdade. A paisagem se descreve pela luz de seus olhos, ela se narra pela sua imaginação. Também não penso nesse instante em Baudelaire, seus comentários sobre Constantin Guy, nem no heterônimo Alberto Caeiro. Apenas conduzo Dorinha, que vai aos poucos me mostrando como o mundo é, guiando minha percepção.

Há patos na lagoa, meninos e meninas correndo, um desenho num muro que lhe inspira terror. (Ela me mostra o que é o terror: uma figura que derrama sangue pelos olhos. Eu ensino: tem isso, sim, minha filha, "Alguém desenhou". Eu aprendo: esse desenho é medonho, papai, "Medo, medo".)

Mas nada tem de medonho - vou descobrindo – o bebedouro onde ela quer molhar as mãozinhas, completamente indiferente ao friúme do dia: “Qué lavá mão, papai!”, ela repete com insistência. Então lava as mãos, bem devagar, soltando um grito de alegria, e pondo o corpo alinhado ao pessoal que faz cooper, imitando. Em seguida, vendo o povo se alongar nos aparelhos, aproxima-se e observa atentamente os movimentos que fazem, sem pudor, olho no olho, e termina por imitá-los, como se todos ali a estivessem convidando pra uma boa brincadeira. Arranca sorrisos, risos abertos, soltos, desconcentrando a obstinação dos devotos ginastas.

Manhãs vagabundas como esta, que preço terão?

Tenho certeza de que cada um desses miúdos detalhes constroem, aos poucos, sólida e lentamente, uma eterna relação de parceria, de cumplicidade, de amor, enfim. Mas francamente não me importo com isso, não me importo com os resultados, os "saldos positivos" do futuro, como se amar Dorinha fosse um investimento...

Me recordo de Caeiro:

Amar é a eterna inocência
E a única inocência não pensar.

Penso em meus pais. Me espanta que eles possam ter me amado assim ou que me amem ainda desse jeito. O sentimento é exatamente esse: o de espanto. Renovo meu amor por eles, e, de certa forma, na convidativa calma da manhã, por toda a humanidade, lembrando os versos de Arnaldo Antunes, segundo os quais Hitler e Einstein - seres tão contrários - foram igualmente o que hoje é Dorinha: uma criança, isto é, esse convite sedutor para a reinvenção do mundo. 

Agora ela insiste em subir no triciclo de outra criança, cujos pais, pacientes, sorriem, liberando o brinquedo. Estamos já no playground, perto do tanque de areia. Ela não solta o brinquedinho do menino e mantém um olhar assustado e ao mesmo tempo paciente. Um olhar concentrado. Digo que devemos continuar caminhando, explorar outros espaços. Sugiro o balanço, a gangorra, um trepa-trepa incrementado que eu não lembro de ter visto em minha infância. Ela não quer. Encontrou o seu posto, está estável, dura sobre as três rodinhas – e nem sabe pedalar.

Tirá-la do triciclo significa convocar um choro ao qual me habituei de tal forma que quase já não me incomoda. Os outros "nãos" que lhe darei pela vida – como ocorre sempre nessas horas – vêm à tona. Mas o que devo atirar ao futuro? Eu me recuso a especular – o pensamento dura poucos  segundos – porque o presente me envolve e quero aprender a ser fiel a ele, em sua forma dinâmica e até mesmo confusa. E logo sou convidado para novos olhares, reconhecendo ou conhecendo outros ângulos do mundo. Ela parou de chorar, e vamos prosseguindo - não é assim a vida?

É muita novidade que Dora respira, canta, grita, chora e gesticula. Cada um de seus passos – na pista de cooper, no tanque de areia fofa, na estaticidade resistente no triciclo – representa para mim uma chance de inscrever-me de outro modo na vida, convidando-me para o mundo, e a cada dia mais enfaticamente me mostrando que é um verdadeiro pecado não gostarmos de viver. 

Mais tarde, depois do almoço, quando ela cede aos encantos de um Trenzinho do caipira entremeado de Bandeira e Ferreira Gullar, que eu entoo quase todos os dias, como um mantra, um sorrisinho maroto ainda resiste no rosto dela. Mas Dora vai aos poucos entregando-se ao sono.

Com quem se parece?, pergunto. Comigo, com sua mãe, com nossos pais e parentes, é claro. Mas parece também uma espécie de milagre, o milagre de podermos fabricar pessoas e de sermos, também, por meio delas, fabricados, como quem renasce todo dia para a vida. Como a poesia de Pessoa, o espírito pueril transformador do que há de melhor na arte moderna, como o trenzinho singelo de Villa-Lobos, como Bandeira, e sua terra sonhada. Como todos os amanhãs que cada dia engravida.

Como a utopia.


(São Paulo, agosto de 2011)

sábado, 24 de setembro de 2011

# ela à espera


Ela se senta ao café e o espera. Folheia revistas de variedades, fofocas, moda. Não deseja ser flagrada lendo tais tolices. Sabe bem que ele valoriza a inteligência e quando a suspende no ar num abraço apertado, quando lhe diz Meu anjo, é também a sagacidade dela, seu humor perspicaz, sua espirituosidade o que ele festeja. Quando percorre seu rosto, pescoço, barriga, ventre, pernas, tocando tudo com seus lábios calorosos, apaixonados, é também sua graça poética, sua intuição, seu surpreendente senso de beleza o que ele beija.

O arco deleitoso do riso se arma em seu rosto, um breve arrepio percorre-lhe as pernas, sobe pelas costas, agita o coração, acaba num tremor das mãos. Está completamente arrebatada.

Trata-se de um amor intermitente, que ela alimenta, a bem da verdade, desde os dezessete anos. E ele? Envolveu-se com outra, com quem manteve laços firmes, uma relação estável, que incluía família e abarcava toda sua rotina. Chegou a encontrar eles dois, certa noite, dançando numa casa de rock. Um ódio súbito fulminou-a e uma garrafa caiu de sua mão para espatifou-se no chão entre o grito Vagabunda!

Fúria, ódio, ímpeto, amor, sempre assim sua sensibilidade, sempre essas coisas ligadas em cadeia, uma necessária à outra, de modo inextricável, e por isso, ela acha ou sabe, ele acabou sumindo.

O que a faz acreditar que então agora, de uns dias pra cá, de um domingo nublado até o dia de sol colorido, café com biscoitos, calor em seu corpo – o que a faz acreditar que poderá ser diferente? A idade, talvez. Sim, porque na época era praticamente uma criança, e ele tinha já seus vinte e cinco anos.

Sim, a idade: porque, naquela época, a descoberta fascinante de seu corpo, cuja potência parecia-lhe infinita, agitava-a, punha-a ansiosa, voraz. Talvez o tenha assustado. Quem sabe, ela ri, o imaturo não seria ele. Sim, porque afinal ele voltou, preparou-lhe um banquete, comprou-lhe roupas e livros, festejava cada um de seus encontros, como quem finalmente consegue aceitar um desejo temido.

Medo: era isso o que ela provocava então?

O sorriso aberto, o rosto cheio de sol, o corpo inundado de luz, o dia quente e cheio de desejos e coragens. Um sorriso orgulhoso. Um sorriso solar.

O dia com suas sendas e sentidos solares. E as noites, densas e tumultuosas, noites de portas de carros batendo, de portas de bares abrindo e fechando, de quartos e escadas e salões de hotéis. Noites de faróis e viadutos seguidos a pé. Noites de luzes na avenida e de dança madrugada adentro. Noite, égua firme e galopante que trazia seu herói por cima de todas as outras coisas, noites dos dois, Por aí, como dois besouros bêbados, ele disse. Noites de cruzar a cidade até chegar a seu centro nervoso. Noites tranquilas, duas sombras projetadas na calçada, dois contornos de dois corpos projetados nos muros, nas paredes do quarto. Noites de ele cortando legumes na cozinha e a pergunta que ele faz Como foi a viagem? Ela diz que foi boa e passa a contar sobre o livro que lê e ele diz que é um livro bonito e também que lerão o que for indicando a vontade dos dois para sempre, até o dia final do cansaço maior. Cansaço?, ela diz.

É incansável. Na fala, nos gestos, em toda sua corporalidade e existência. É um animal irrefreável, uma fera falante, Uma faca afiada, ele ri, com os gominhos tirados do imenso pepino. Diuturnamente móvel, na cama, encaixada em seu tronco apolíneo, no escuro dizendo Esse amor é azul. Em todos os sonhos que narra e ele escuta ela é ágil, vibrante, volátil e azul.

Sempre móvel. E é desse movimento incontrolável – ela acha ela sabe – exatamente disso: o que ele gosta. É isso o que o faz agora retornar, pés sobre o chão, passos no asfalto, passos mais velhos. É isso o que ele agora pôde então entender ser a única coisa sem a qual já não vive. Esse velho soldado, esse velho guerreiro de passos mais lentos.

Era ele, portanto, – ela acha ela sabe –, não ela, quem precisava do trabalho do tempo. Com sua perseverança muda.

Está sentada no café e ali o espera. Feliz em sua espera, feliz e airosa, em seu casaco de lã, sua saia de listras, sua meia-calça, seu sapato preto de fecho vermelho. A folhear revistas e lembranças. O tempo não podia ser melhor: manhã de inverno ensolarada, o vento tremulando flores, folhas e cabelos. A luz do sol dourando as copas das árvores, destacando o voo dos pardais, chegando até seu rosto brandamente através da vidraça.

Ela sorve o café, o majestoso inverno, ela sorve essa luz, e o grato instante da espera.

(São Paulo, setembro de 2011)




  

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

# depois dos trinta e cinco

/Imagem de Man Ray/


Ruas e avenidas desenhando um caos no cérebro. Ah. Ondas de frio e calor revesando-se intensas. É hora de chegar, portas e chaves, alguns trocados. Pouquíssimo tempo de sono.

É infeliz? Come bem, tem roupas quentes para proteger-se do frio. Mas poucas. Algumas ideias para o futuro. Vagas. Às vezes gosta de animá-las, juntá-las sobre a mesa como quem despeja grãos num alguidar. São muitas.

Nem velho nem novo. O que é melhor?

Lembrar é muito bom, principalmente da infância, do que resta dos cacos coloridos, nem todos eles bons.

Também é bom pensar nos doze anos, aquele intervalo azulado, suas tardes chuvosas de verão, as corredeiras da rua servindo de rio ou de água do mar, onde espalhava seus sonhos, e eram tantos.

Para onde eles foram? Estão aqui, acalentados nestas mãos resistentes, duras e velhas desde cedo. Mãos tensas, é verdade. Quem sabe envelhecer não possa afinal afrouxá-las?

Isso é um pedido, o mesmo que ele faz, ao assoprar as velas - "Mais calma, Meu Deus, mais paz, mais tranquilidade, mais alegria" -, ano após ano?

O tempo foi-lhe generoso, deu-lhe amigos, amores, um grande amor, dois: sua mulher e sua filha. E paciência. Principalmente paciência. Com ela pôde aos poucos aprender a aceitar: entre outras coisas, principalmente, aceitar seu tumulto, sem tanto medo.

O tempo deu-lhe também, ele sabe, alegria. Às vezes tem convicção de que ela pode ser imortal - basta bater na tecla certa, basta ajustar o prumo, basta tocar o ponto: e a pele, a carne, os pelos e os cabelos, tudo o que irá padecer pode ganhar nova forma de vida.

Os fios brancos serão um começo, lhe disseram. Os fios no púbis e o buço, depois a barba ele sabe, há mais de quinze anos, que foram começo. Os primeiros fios de cabelo remontam tempos imemoriais. Foi o começo. 

Não sabe se isso é certo. Quando acredita piamente em Deus – e em geral acredita – é-lhe evidente que o começo é indefinível. Nem cabelos, nem palavras é o começo, nem fios novos, brancos ou pretos, que somem e aparecem.
 
Um outro fio indecifrável, talvez, o ligue ao mundo - às vezes pensa -, um friúme, um espasmo, um ardor,  uma voz.

É

# São Paulo, 10 de agosto de 2011

sexta-feira, 17 de junho de 2011

# a alma dos mortais


/Imagem de Mário de Almeida/


Lembrar e suportar, tal era o peso. O travo, eh! Guardar dentro do peito - batia o punho no roupão.

Mais novo era abatido, engrossou cedo a fila dos vencidos.

Ratuíno, azarado, pubo, puto, poltrão!

Logo afastou-se dos cenários móveis, acuou-se, prendeu-se, cuidou de detalhes, e escolheu palavras com cuidado: minudências.

Se lhe chamavam frágil suspirava: era mortal, ora essa, frágil porque feito de matéria viva.

Era duro, por dentro, dizia. Duro. Palavras fortes, pesadas, resistentes, puro aço, ácidas, secas.

Antecipara as brenhas para não perder-se, eis a verdade toda.

O oco, eu? Nem morto.

Sílaba por sílaba o silêncio.

Havia vento, havia luz, havia chuva, e tudo só recrudescia em seu severo alento: persistir, aprofundar, inamovível, na convicção.

O outro - ele, eu - que o escutasse: só diria o preciso.

Que era isso.

# bovariana III




/Imagem de Odilon Redon/


Hyppolite, pauvre de Dieu, seguindo em seu andar, claudicante.

Caminhas pra quem?  Pour notre Dieu, Monsieur, seulement pour Lui.

Cocheiro coxo, pulga do quarto estado, o corpo oferecido em Holocausto para a Magna Sciencia.

Pouvre, pó, poeira de Yonville, serves a quem, Hyppolite? À cochia, Senhor. 

O Progresso apregroa os seus signos e Hyppolite claudica, atrasado, tardio, tartamudo: le silence des imbecis.

Serves a quem? À science physique, Docteur, seulement.

Suado, com seu cheiro equíneo, Hyppolite aguarda o milagre, mãos erguidas pro céu: ao Senhor, à Ciência.

Talvez - se tivesse imaginação - pediria pro tempo parar.

(São Paulo, agosto de 2011)

domingo, 5 de junho de 2011

# bovariana II


/Imagem de Odilon Redon/


Desacreditas que ele possa ser tão forte e obstinado, tão independente. Por ele, por ele mesmo procuravas - o galã misantropo que te envolve em sua capa, plena noite, tendo em torno completo silêncio.

As folhas nem se movem, os bichos estão mudos. A natureza concentra-se toda em teu corpo, essa potência de espasmo e de luz.

É noite. Os seres concretos já dormem, apascentados. Estão saciados os apetites simples. E a sede infinita, sem nome, pode enfim consumir-se no êxtase.

Dorme, charneca; descansa, manso gado. É hora de a chama imortal inscrever o seu nome.

(São Paulo, agosto de 2011)

quarta-feira, 25 de maio de 2011

# bovariana I

/Imagem de Odilon Redon/




É teu suspiro esse ruído, ele não vem. Provavelmente não, não viu? Agora vai eufórico à cidade, seus passos já pisaram resolutos essa lama, estão em plena estrada. Essa terra é pequena pra ele, ele quer galopar, alargar-se, mover-se. Porque afinal ele pode enfronhar-se de fato em tudo aquilo que em você não passa apenas de sonhos, desejos vagos, possivelmente até mesmo doença. É fato. Ele vai ser tragado pelas luzes da cidade, girar por elas e perder-se, consumir-se. Terá à sua mão os cheiros e as palpitações da vida errante, misturas e farturas de artifícios, frufrus e tranças, festas de cores e licores e sabores. Até quando durarão? Até quando: essas glórias pequeninas que viveram em segredo, esses prazeres mudos que compartilharam – até agora pouco, quando ele veio aqui, mediu-te de alto a baixo, para depois partir sem quase ter palavras - e que, quando vividos, eram imensas volúpias condensando os segredos do mundo? Eu pergunto até quando. Pois os segredos do mundo, eles todos, inteiros, virão de uma só vez à frente dele: por meio dos convites transbordantes dos hotéis, pelas portas dos bares de sorrisos palpitantes, pelas luzes dos prédios, restaurantes e teatros, pelos olhares novos, fulgurantes, estrangeiros, pelos aplausos vivos, pelas capas dos jornais. 


Tens à tua frente esse horizonte largo, a imensidão que te promete oferecer, talvez só por ofensa, o sol tranquilo de todos os dias. 


(São Paulo, maio de 2011)

terça-feira, 17 de maio de 2011

# moinho

não basta
o sol
não basta o dia
o meio-dia
a luz
não basta
a ruína
as vozes roucas dos coronéis
não basta
a brisa
na capela
o luar
a enchente
não basta ser
indiferente
ignorante
ou impotente
não basta o erro
incoerente
não basta o gesto
transparente
não basta o rio
o arrepio
o brejo o beijo e a beira e o brio
não basta a doce forma do vazio
não basta a dose
o inflamável
não basta o terço
irremediável
não basta a tosse
o tifo, a praga
não basta o gozo
a mão que afaga
não basta o insone
o que divaga
não basta o berço
nem a cegonha
não basta a cegueira
a imagem medonha
não basta a culpa
não basta a caspa
não basta a barca, o mar Cáspio, o casper
não basta o Batman
não basta o grito
o curto-circuito
a faísca da fúria
não basta a fogueira
não basta a busca
a bebedeira
nem basta andar a noite inteira
não basta o lar
o labirinto
não basta a besta
nem a flor bastarda basta
não,
basta!


# São Paulo, 2002.


sábado, 7 de maio de 2011

# negavela


/Imagem de Odilon Redon/

 
Toma a tua sopa em cadência. Que decadência, nega!, andando pela escada zonza. Nunca tens medo: do peão que fala em te foder, do besouro perseguindo teus mamilos, do corcunda do quarto 12, te olhando difuso, rendido à benzina. Nem tens medo do PM que passa os papelotes para a vila. Mas tua hora vem chegando, bem sabes. Rebolas menos agora, e olha muito agora, nunca olhaste tanto: para as ambulâncias, para as enfermeiras, e o que te interessa no corcunda são as ampolas que ele guarda. Uma sombra, nega – são as patas absurdas perseguindo teus requebros. Tens o paraíso ameaçado - os discos, a cachaça, a pensão que te segura – tuas unhas não conhecem mais esmaltes, e ainda que apeles em usá-los, não inibirás tua falência, teu descascar em cores fortes e suaves. Nunca foste suave, os olhos sempre injetados, o rosto, pedregulho maduro, sorria por convicção – nunca foste levada! Andas aparvalhada, e tua coragem agora é cômica. Amedrontas-te com o mínimo ruído, de baratas que se aventuram nas gavetas, de traças que ousam por tuas roupas, teus papéis. Não tens tempo, ou o tens em excesso, como fartas águas de rio estreito. Não suportas o tempo, contado em programas de tv, em abrir e fechar de portas da vizinhança, em ecos, silêncios, espasmos, engulhos, vapores, vagares. Gostas de ouvir o sexo da universitária do quarto vizinho, que sempre leva para farrear uma duas três amigas. Parecem gatas. Refestelas-te? Talvez gostasses de participar? Não, ficas compungida, horrorizada, te deitas na expressão bovina de quem nada viu. Mas, sim, depois desces, sempre a soprar tuas sopas, dando pequenos bocados de quando em quando, vai conferir quem são as moças. E são sempre lindas, e nunca são as mesmas. Onde a mocinha as encontra? Tu queres tetas, nega? Negas! Queres gemidos mais dóceis que os das garras ásperas dos Mores Majores Belchiores? Um buraco começa a escavar o teu peito, já notas – e arrotas, solitária, cenas de outras paixões... Vendaval... O de barba do bar te encarando. Dizem-no alinhado, prudente, professor. Seu olhar cristalino desenha memórias no ar. Pensa na infância, é o que dizem. E tu, nega, na infância? Não te ocorre voltar ao passado, concreto carcomido entre tábuas rangendo, tu arrotas, solitária. A cama do homem de olhos macios: alinhada, prudente. É o que queres? Amavas Amarildo, que não retornou mais de Santos depois que viveras o aborto. Sangue morto. Mas teve o passeio de barco com cravo amarelo nas tranças. E um vinho importado, bebido no Parque da Luz, ao som de foguetórios. Era Réveillon. Ano após anos, tudo passa,  Amarildo e a beleza de tuas tranças, os Majores e os Sertores e os Minores, olhos mortos absortos de abortos, olhos leves espumosos veludosos. Tudo passa. As meninas entre risos nas escadas, as famílias com sacolas e crianças, viaturas e ambulâncias no silêncio. Tudo passa. Nega fica. Nunca atiraste tuas bitucas nos passantes, nunca apelaste ao professor de barba fofa. Mas é a mesma coisa, nega, ter escola e ter maldade.


São Paulo, janeiro de 1998.   



domingo, 17 de abril de 2011

# subsolo da palavra

/Imagem de Goeldi/

Pável, covarde, te odeio. Você com essa ruga na testa e esse ar de esperança, você assim desse jeito, sinceramente, parece um boçal. Você já disse isso, não é?, já disse de si mesmo: que era um boçal, etc. – você é um babaca, Pável. Olha o seu nome, tirado de romance russo: nome de louco, de sonhador. Você com este ar de derrota na testa – onde apanhou essa ruga, meu caro?, e esses olhos então, terrivelmente apagados. Como é que pôde transformar-se nesse ser tão pesado, a pele macilenta, a boca desbeiçada, o queixo caído ao peito. Como é que pode ser isso: um sonho desgraçado, uma esperança perdida, um náufrago dos próprios projetos, eu diria um idiota, meu chapa. Não digo, não, meu Pável, porque afinal de contas hoje é seu último dia por aqui – é a última vez que nos vemos, não é mesmo? Depois deste instante, e adeus. Você já contava com isso e esse gesto de adendo não serve pra nada; confirma somente a natureza duvidosa de um homem cheio de vaidades, e também, é claro, seu velho prazer em roer o menor naco possível de insatisfação, sua culpa ou qualquer coisa assim. “A história é uma virgem donzela”, me disse, e deve mesmo se lembrar da talentosa exposição que fez, uma daquelas elucubrações tão suas. Eu lembro muito bem, meu amigo, e agora mesmo posso ver, em seus olhos escuros, o abismo de sonhos, temores crispando, o torvelinho inquieto girando na cuca; posso te ver, sonolento, calado, a noite toda aí, quase inerte, tomando cafezinhos e copos d’água. Não quis comer, recusou-me o vinho, nem mesmo falou sobre coisa nenhuma. Cada palavra que eu digo te fere, se agita e se mistura em você – as palavras te mordem, eu sei, eu vi que agora até se levantou, saiu dessa poltrona e andou por aí – deu seus passinhos, né? Até dançou que eu bem vi. Depois se encurvou novamente, meteu a cabeça entre as mãos e ficou, o rosto erguido, a porra das rugas gemendo na testa. Agora eu as vejo melhor, agora que cai essa luz sobre ti, eu bem vejo, é verdade: ela fala, meu caro, essa luz. Talvez você seja tragado por ela; e eu bem sei que acredita, piamente, Pavel, na luz oscilante que gira à sua volta. Não se envergonhe, não; olhe, se quiser ir embora de vez, eu entendo, eu aceito sua causa com todo o respeito, considero-a corajosa, cheia de virtude, a virtude luminosa dos mortos, naturezas destemidas que se atiram e seguem, à correnteza do destino, sem medo ou compaixão – eu bem sei que os heróis são assim, como estátuas de bronze, o rosto resoluto e o peito erguido:o destino à sua frente e uma história às costas....Você quer buscar uma aura pro mundo... o mundo tem andado muito triste, é verdade, muito mesquinho e acinzentado também, ele parece mesmo ter ficado imóvel depois de tanta agitação. Uma sombra a rondar a cabeça: é o demônio mofino da dúvida, atormenta teu sono e vigia tua mente; por isso passou acordado esta noite inteirinha, e é claro que sabe o problema que nos trouxe, uma destas noites, e todos já devem saber e já não resta mesmo qualquer dúvida: sempre se referem a você como um jovem derrotado, doente, um velho sem experiência, um fantasma ou algo do tipo; que amofina a si mesmo e vive esmolando perdão, a qualquer um, ao mais próximo que possa estender a mão e oferecer, por piedade, uma migalha de humanidade. Assim você ficou, e continua querendo ficar: rasteja e revolve a ruína, quer revitalizar a vida e no fundo, meu Pável, você a detesta! De-tes-ta. Fiquei sabendo que encaixotou sua literatura, que desejou virar jesus cristo gritando na rua. Pois é, engrolou seus latins, bateu no peito e arrotou em alemão e agora taí: vendendo traça pela rua, muito atento ao modo como eles se viram – os “da rua” -, tentando apreender os seus códigos. Mas não consegue enlouquecer: queria ser como os nautas e os bardos, queria viver aos soluços do vento, queria naufragar feliz pelas tardes de outono – queria cafés, cabarés, a rudeza das noites passadas em claro, a penar pelos outros, queria arrancar a estupidez do trono e restituir o lugar da verdade. Eu preciso dizer a você, meu querido, e agora eu te sublinho – queridíssimo: o herói saltou do prédio e, quando viu, estava sem asas, mas não morreu no calçamento – e sim durante o vôo, no ar... Você vê esse corpo na rua, acredito, você com certeza pode vê-lo, eu bem sei, deve passar por ali a cada um de seus dias, guardou sua imagem, o rosto sem olhos, a boca na testa, recolhe em sua mente os farrapos, cada tico de vida daquele luminoso ser, o herói sujo de óleo, as penas em sangue, um pombo no trânsito e você logo vê: a bomba instalada na cidade, as galerias lá embaixo fermentando, você sabe disso, você pensa no tráfego, em todas as vias, você vê e pensa e consegue enxergar tudo isso; tudo circula em seu corpo, os males do mundo são seus, a parafernalha infernal da cidade te habita, um pombo gorducho que pousa no asfalto parece a você importante. Acha que tudo é descritível, concreto, apreensível e, o que é pior: transformável, corrigível. Acha que tudo funciona integradamente, basta observar, e mais que isso, basta querer observar e então dar – o definitivo, o proverbial: o empurrão. Não é isso, Pável? E agora percorre o terreno da morte... É a última noite, não é isso? Nem sei bem por que, nem sei que me deu, para atendê-lo. Seu rosto surgiu-me da sombra, e então passou a falar – depois murmurou e afinal emudeceu, ficou aí pelos cantos, até deixando que era também feito de sombra, uma nódoa, ou um espectro, não sei... E se soubesse, de que adiantaria? Mas não é o caso de ter medo, meu Pável: o mundo é mesmo muito desumano.


(São Paulo, 21 de julho de 2004)