sábado, 9 de maio de 2020

# memorial de uma vida privada


CONSTELAÇÕES FAMILIARES | Método Psicoterapêutico
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Dona Nair, o coração de florista, acordou sete e quinze para arranjar as flores, begônias cor de laranja, exuberantes, pareciam derramar pela sala sua vontade de beleza. Pareciam derramar sobre o dia sua beleza de begônias. 


Depois ela seguiu até a sacada de seu pequeno apartamento em Perdizes, regou as plantas e ficou parada por alguns segundos escutando em silêncio a alegria festejante dos pássaros. Dona Nair, o coração passarinho, sentia dentro do peito a melodia dos bichos. Os passarinhos pareciam derramar sobre o edifício antigo sua alegria antiga de pássaros. 


Dona Nair confirmou a beleza, confirmou a doce alegria do dia. Dona Nair caminhou até a cozinha e confirmou na folhinha da farmácia: era Dia das Mães. 


E recebeu o primeiro telefonema. 


Rodrigo, seu filho mais velho, morador da Vila Ipojuca, ligou logo cedo, e enviou, numa self com a mulher e os três filhos, um "Parabéns pelo seu dia".  


Era uma pena seu Alcindo não estar mais com eles, Dona Nair comentou, depois de agradecer, o coração pesaroso. A ausência do marido já contava seis anos. Homem morre cedo - ela lamentava, o coração em frangalhos, logo após a missa do sétimo dia.


Rodrigo trazia outro pesar: com aquele vírus se alastrando pelo mundo, era uma tristeza não poder abraçar sua mãe naquele dia, grudar-se nela, transmitir seu carinho de filho primeiro, tão ligado nos sonhos de Dona Nair, tão ligado à sua sina: professor, educador, formador de cérebros e de corações, gente valente, instruída e carinhosa que o cumprimentava com devoção para onde quer que fosse. Gente que andava absorta com a nova ordem do país amado: um presidente que não se dignava a atender a emergência da situação e que, ao contrário, quando interrogado a respeito da tragédia, de proporções inéditas para toda a humanidade, comentara: E daí?


Dona Nair, senhora de idade, não tinha lágrimas para derramar pelo destino do seu povo, do qual se ocupara, em seus quarenta e cinco anos de dedicação docente, com zelo e senso de dever, atenção e carinho, princípios que ela transferira a Rodrigo, e a tantos outros e a tantas outras que resolveram seguir seus sinais, tornando-os sinais de si mesmos, sua sina, seu sonho. 


Dona Nair comentou constrangida: aquilo não era problema, poderiam conversar por telefone, trocar fotos e fazer uma chamada de vídeo para brindar. Se o presidente era um louco, não seriam eles a fazerem o mesmo. A lucidez da humanidade reclamava: era preciso, infelizmente, viver a tal quarentena. E aguentariam. 


Rodrigo e a esposa cuidando dos filhos e fazendo home-office. Os filhos metidos dentro do apartamento, procurando estudar de um jeito antes nunca visto, mas era tudo sacrifício importante, todos sabiam, e seguiam, amigáveis, temerosos, mas também esperançosos, o pacto social do isolamento.


Dona Nair passou um café, derramou-o na xícara antiga - lembrança de um congresso na Espanha, suas alegrias de professora universitária - e fez um brinde a Rodrigo. Mais tarde e seria um brinde de verdade, com vinho branco gelado. Ficou combinado. Era falar com Luís, era falar com Ernesto, os outros "meninos" de Dona Nair. 


Luís era médico e morava no interior. Ao saber das agressões físicas e verbais que os agentes da saúde vinham sofrendo pelos apoiadore do governo, telefonou para o irmão mais velho, tiveram uma conversa longa, Luís chorou de desconsolo. Como a saúde poderia ser combatida, como era aquilo de existir uma "militância contra a vida"? Dividiram lamúrias, se ajudaram com o que tinham: a teimosa esperança, sempre ela, presente mesmo ao constatarem, no interior da família, o enorme desgosto: o irmão caçula, Ernesto, morador de Pinheiros, vizinho da mãe, era defensor ferrenho do "suposto governo". 


Era um lamento que circulava na família desde as últimas eleições, quando tinha se tornado impossível conversar pelo grupo de WhatsApp. Não foi Ernesto quem decidiu, em respeito à maioria, retirar-se do embate. Foram a mãe e os irmãos, a filha de Luís, os filhos de Rodrigo. Ninguém sequer conseguia expressar a indignação e a dor, principalmente a dor, no caso dos mais velhos, principalmente a indignação, no caso dos mais novos, diante das frases que Ernesto postava no grupo: "Tem muito safado para matar neste país, ainda vamos voltar aos bons tempos militares." 


Dona Nair, o coração materno, perdoava, no fundo, e se perguntava o que tinha feito de errado. Como que um filho seu, criado por um pai e uma mãe que foram perseguidos pelo regime militar, amado por tios e tias, alguns também perseguidos, impedidos de trabalhar, e ainda um avô que foi torturado, depois exilado... Como era possível?


No dia das mães do ano anterior, Dona Nair, o coração despedaçado, sussurrou: "Nos úlimos dois anos, envelheci mais de dez". Luís completou: "É o país que envelhece". Rodrigo arrematou arrematou: "Na verdade envilece".


Todos ficaram calados. 


E Ernesto ergueu a taça risonho: "Um brinde ao Brasil! Este país agora voa!" 


Não houve brinde. 


Ernesto ergueu a voz, foi rispidez em cima de rispidez sobre os irmãos, terminando com: "Comunistas safados!", depois do que bateu a porta, trêmulo de ódio. 


E desde então nunca mais se falaram. 


Dona Nair, o coração cansando, agora que chegava aos seus setenta anos e estava há mais de dois meses enfurnada em seu apartamento, queria ver o sol que entrava na sacada, a música dos pássaros, as  corola das flores. 


E então, enquanto a carne assava no forno e ela tomava uma taça de vinho, foi com amor materno que atendeu à ligação de seu terceiro filho: 


"Parabéns, Dona Nair! Sem ressentimentos neste dia especial! Estou na esquina, vou subir para dar um abraço... Quero abraçar a a minha mãe."


Dona Nair, o coração macio, sorriu de alegria e, mesmo com enorme medo, não foi capaz de recusar: foram dez minutos e mais uma taça de vinho e logo  porta foi aberta para a entrada de Ernesto, seu filho caçula. Ela caiu em seu abraço apertado, seu beijo e foi envolvida em sua fala firme: "Mamãe, não escute esses doidos! Você tem sessenta e nova anos, aguentou de tudo, não é agora que vai se entregar!" 


Dona Nair, o coração conquistado, há um ano sem falar com o filho, comemorava com ele o seu Dia das Mães. Trocavam palavras carinhosas, atualizaram assuntos e, ao esvaziarem a garrafa de vinho, Ernesto se foi, ainda antes do almoço, para que "os frescos não falassem dele depois".


"Vai que a senhora espirra ainda hoje, e logo a culpa será minha."


Ernesto tomou o elevador. Dona Nair, o coração materno, não lhe impôs máscaras, uso de álcool em gel e os cuidados exigidos naqueles tempos de guerra. Viu a luz da aparição do filho, e se esqueceu de si.


Dona Nair, o coração animado, o sangue quente com o efeito do vinho, almoçou assistindo a uma série e, muito sonolenta, dormiu por ali algumas horas boas de descanso. 


Ao fim da tarde aceitou com alegria o convite de Rodrigo e Luís para uma festa por vídeo. Com muita alegria conversaram, fizeram brindes, as crianças fazendo algazarra. E assim se minorava o desânimo e a tristeza que tentava abatê-os dia a após dia, num cotidiano que era mais um caminhar à beira do apocalipse.


Entre as palavras de alegria, Dona Nair, o coração aniversariante, comentou sobre a visita do caçula. Suas palavras causaram espanto, os dois filhos e as esposas ficaram em silêncio. E o medo intimidou a alegria. As perguntas surgiram, contidas, educadas, mas marcadas por evidente preocupação, Ernesto passou álcool em gel? Tomou banho? Trocou de roupa? Ficou quanto tempo? Vocês se beijaram, se abraçaram? Mãe, a senhora é uma pessoa idosa. 


Mas a delicadeza impediu que Rodrigo e Luís insistissem com o tema. Dali a pouco encerraram o vídeo. E convensaram apenas entre si, tentando avaliar as possíveis consequências, os dados médicos de Luís procurando aliviar o pavor: não era tão certo, vamos apostar na sorte. E rezar. 


Dona Nair, o coração aquecido de tanto carinho, deitou em sua cama solitária e pensou em sua mãe, muitos filhos para criar, netos correndo no quintal, a galinha que ela mesma matava. Os pensamentos escorreram até o sonho, onde as imagens sobrepunham-se e os seus três filhos andavam com ela num lugar de árvores frondosas, parecia ser o Jardim Botânico ou o Parque da Água Branca. A certa altura, o marido aparecia a cavalo e com algodão-doce na mão, oferecia-lhe o doce e a levava para andar entre begônias.


Foram duas semanas para Dona Nair, o coração adoecido, precisar internar-se e, após alguma luta, entregar-se eternamente às mãos da noite desconhecida.


Lá se foi Dona Nair, 
coração de nosso tempo. 



# São Paulo, 10 de maio de 2020.


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